Alline Parreira viveu
nas margens do rio São Francisco, em Manga; trabalhou em Brasília-DF e há dois
anos faz faxinas em casas em Nova Iorque, nos EUA
MANGA – Uma mulher brasileira, negra, no comando de
palestra em uma universidade dos Estados Unidos já chama a atenção pelo
inusitado, mas o caso de Alline Parreira, 27 anos, é ainda mais surpreendente:
ela é autodidata, não fez graduação em nenhuma faculdade, é ativista social e
atualmente ganha a vida no ofício de fazer faxinas em casas de nova-iorquinos.
Ela se mudou para os Estados Unidos há dois anos, após uma passagem por
Brasília.
Alline é partidária da tese de que nem todo
conhecimento vem de livros. Nascida em Manga, no semiárido do sertão mineiro,
ela conta que foi adotada ainda na barriga da mãe biológica por uma mulher
inter-sexual. Depois seria novamente adotada, aos três meses de idade, por uma
mulher branca e já idosa.
Foto divulgação
Alline Parreira, 27 anos: mesmo sem a
escolaridade do Ensino Superior, essa ativista de Manga se destaca pela
superação.
“Para nós mulheres negras não foi permitido narrar
nossas histórias em primeira pessoa, eu quebro esse paradigma. Sou eu que conto
minha história, isso para mim é muito importante”, aponta.
Alline conta que seguiu em frente, "pobre e
preta", na luta contra racismo e preconceito até construir seu gênero e
aceitação identitária como mulher negra, sem referência racial na infância,
quando conviveu com a família adotiva.
A trajetória de vida é credencial com que chega à
universidade, na condição de palestrante. Na próxima sexta-feira, dia 15 de
junho, a manguense vai narrar sua trajetória em primeira pessoa em palestra
documental e que, garante, será inovadora, porque mescla poesia, oralidade e
projeções da rota que a levou da pequena Manga até Nova Iorque, na Cuny
University. O evento contará com a mediação do doutor Eduardo Vianna e será
transmitido pelo Facebook do BradoNYC.
“A vida foi a minha universidade. Sem curso superior
sem nada, busquei informações e aprendi com muita pesquisa. Minha construção
identitária é baseada no que aprendi lendo os autores acadêmicos Angela Davis e
Frantz Fanon”, relembra.
Com Angela Davis, feminista americana e ativista do
Partido Comunista, no livro em “Mulheres, Raça e Classe”, Alline diz ter
percebido que todo processo da construção da identidade, gênero, raça e classe
sempre caminharam juntos. “Sou mulher negra e pobre”, assume.
Com livro ‘Peles Negras Máscaras Brancas”, de Frantz
Omar Fanon, psiquiatra e filósofo francês martinicano, Aline conta ter
apreendido, “de forma muito radical" a se descolonizar. "Com ele, modifiquei
totalmente o meu ser, eu me libertei”, ela afirma.
Para o professor Eduardo Vianna, que atua como uma
espécie de mentor da manguense, o conhecimento conceitual, teórico tem que
estar a serviço da prática, mas a prática precisa ser analisada. "Essa
prática requer conceitos", diz Vianna, para quem não é possível
dicotomizar os dois tipos de conhecimento. Eduardo Vianna é Ph.D em psicologia
no Cuny Graduate Center e traz no currículo uma especialização em psiquiatria
infantil no Rio de Janeiro.
Convidada pelo Coletivo BradoNYC, Alline promete fazer
performance surpresa ao longo da sua apresentação, em que vai falar sobre
privilégios, identidade e transformação social.
Privações
Nascida logo depois do advento do Estatuto da Criança
e do Adolescente, Alline repete sempre que foi doada pela mãe e adotada por uma
senhora extremamente pobre, que também morava em Manga. Mais tarde, foi adotada
pela mãe dessa mulher. Moravam no sertão de Minas Gerais, quase na divisa com a
Bahia, à beira do Rio São Francisco, onde diz ter passado por todo tipo de
privação possível: do afeto às oportunidades, tanto na família quanto na
escola, onde diz ter sido negligenciada no seu potencial.
Apesar de todas as impossibilidades, Alline conseguiu
dar a volta por cima ao descobrir programas governamentais implementados
durante os governos petistas (2003/2015) na Presidência da República. Ela diz
ter se inscrito em programas como Bolsa Família e, posteriormente, teve a
oportunidade de matricular em cursos de qualificação.
Um momento marcante na história de Alline veio com a
bolsa de estudo que recebeu do governo federal, após ter participado do Edital
de Intercâmbio 02/2013 do Ministério da Cultura. A bolsa possibilitou à
faxineira cruzar o mundo e passar temporadas em Moçambique, Etiópia e África do
Sul.
“Mudou meu rumo, e ampliou os meus horizontes, com o
conhecimento prático, de uma mulher negra viajando sozinha”, relembra. Daí em
diante Alline, que já havia tomado gosto pelos estudos e pela leitura, passou a
aplicar os conceitos críticos que ia aprendendo com autores que combatem
opressões, como racismo e misoginia, à sua própria realidade e trajetória de
vida.
“Quando relato minha trajetória, as pessoas se
surpreendem. Cresci em uma família branca e extremamente pobre, completamente
disfuncional. Vivi muitas opressões tanto da minha família adotiva, quanto na
escola. Ninguém nunca esperou nada de bom de mim”, desabafa.
A conclusão imediata sobre uma criança negra adotada
por uma família branca é de que ela foi acolhida por uma família rica,
conjectura Alline, para evidenciar que cresceu em ambiente de muita pobreza.
“Não tínhamos luz elétrica e a comida era feita em fogão a lenha, por falta de gás,
” diz. A ativista sonha em levar a história de vida para os livros e já busca
parcerias ou editoras. (Fonte: Portal Geledés e site Em Tempo Real, do
jornalista Luís Cláudio Guedes, que é de Manga-MG e radicado em Brasília-DF)
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